segunda-feira, 21 de maio de 2018

O dia em que fui consertada


Tenho uma sobrinha de cinco anos que parece ter saído direto de uma narrativa de stand up comedy, um desenho animado ou de uma HQ. Ela é inteligente, divertida, amorosa e bem caricata. Eu poderia escrever uma crônica por dia sobre as peripécias que ela apronta, fora as que eu fico sabendo, e ainda assim sobraria história pra contar. Essa é a de hoje, sobre o dia em que ela me consertou.
Depois de uma semana corrida de trabalho e aula no sábado,  decidi descansar. O plano era acordar cedo no domingo, pedalar por duas horas,  ir à missa e almoçar com umas amigas. Mas o descanso virou uma hora de sono e eu só consegui pregar os olhos de novo às quatro da manhã. Acordei quebrada pro pedal e tarde demais pra começar a fazer as outras coisas. Como tinha que trabalhar depois do almoço, decidi ficar em casa achando que a tranquilidade estaria junto.
Eu tentava em vão assistir a um TED e depois ao primeiro episódio de Friends no aplicativo da Netflix no celular, querendo que uma maratona de riso fácil me roubasse a atenção e desviasse o pensamento. Deitei na cama da minha mãe e, vira e mexe, aquele ser de cachos dourados esvoaçantes e óculos lilás aparecia. Primeiro veio com uma coroa na cabeça. Transferiu a tiara pra mim e começou a velha sabatina de perguntas. Conversamos assuntos de princesa. Quando ela se afastava, retornava sempre com algo novo, umas histórias que sabe Deus de onde tirava, algum causo da escola, um par de uvas que dividímos e a Peppa Pig de feltro. Passei a manhã inteira tirando a Peppa Pig do meu colo por causa da alergia, até desistir. Esqueci de Friends, de que iria trabalhar no domingo até bem tarde, de que não consigo fazer planejamento algum no momento, do aniversário de separação e da ansiedade. Esqueci do meu esgotamento físico e emocional. A insistência dela em brincar e conversar comigo  venceu a minha  em permanecer vidrada no celular. Construímos estórias, vimos um vídeo de 24 segundos - que eu tive de repetir umas quatro vezes pra que ela risse as quatro e eu risse dela. Montamos uma cabana de lençóis e isopor, arquitetamos um plano de enganar os amiguinhos do pré-escolar com areia feita de biscoito triturado e minhocas de gelatina e virei um robô, que precisava de conserto. Em uma das suas chegadas ruidosas, ela tinha nas mãos uma peça de decoração do baby chá do irmão que vai nascer mês que vem. Com a sua chave de fenda imaginária, passou a apertar os parafusos soltos da minha cabeça. Um a um. Teve uma hora que foi impedida de usar um prego de verdade. Só sei dizer que funcionou.

quinta-feira, 10 de maio de 2018

Sobre o tempo



Penso em distância e tempo com a relatividade de Einstein, que pode ser tão inexata quanto à metafísica de Aristóteles. Tempo e distância habitam em nós, na nossa órbita particular. Eles transpõem a separação dos corpos e dos anos. Tudo cabe ao valor atribuído. A importância que damos às coisas e às pessoas transforma o nosso olhar sobre a vida, no que a gente crê e a forma que escolhemos viver. Por isso sigo peregrina como a Liz, de Elizabeth Gilbert, em sua busca angustiante por si mesma, relativizando importâncias. Como bem disse Lispector “liberdade é pouco, o que eu quero ainda não tem nome”. Quando diante do tormento à procura de respostas, meu coração sempre se reconforta com uma certeza implacável: nada dura para sempre.

terça-feira, 8 de maio de 2018

Busca



Quando nos sentimos perdidos, a última coisa que desejamos é compromisso. O mínimo que seja, como precisar ter hora para acordar, uma rotina para cumprir ou cuidar de uma vida diretamente ligada aos nossos atos. A gente até se engana em achar que ter responsabilidade é um norte. Quando se afundar em obrigações vira rota de fuga como álcool, drogas, religião e paixões em demasia, o dano é o mesmo. O subterfúgio nos impede de enxergar para dentro e, assim, ver adiante. Ele é pai e filho do desequilíbrio.
Essa tomada de consciência nos faz questionar o que significa, de fato, viver a realidade ou na ilusão. E, no meio dessa auto interpelação, tentar descobrir onde finda a busca incessante por equilíbrio - ainda que fora do padrão de normatividade que nos rege culturalmente. Querer fazer o que se tem vontade muitas vezes implica em se sentir um estranho fora do ninho e arcar com esse ônus da estranheza pode ser cruel.  Parece coisa fácil agir de acordo com os nossos desejos, mas “decepcionar” as pessoas que nos são valorosas nos coloca quase sempre numa sinuca de bico. Arrisco a tacada ou não? Crescemos tão comprometidos com as entidades de classe, (família, escola, igreja trabalho, amigos), que tomamos o estilo de vida a que estamos inseridos como a fórmula eficaz de sermos felizes. Sobretudo na cultura ocidental, mais ainda na América Latina. Quando não nos encaixamos, iniciamos uma jornada de desconstrução ao que fomos programados. E é uma trajetória que já startamos fatigados física e emocionalmente, sobretudo porque aceitar que precisamos nos ressignificar requer o esgotamento e abandono das nossas fontes mais promissoras e acessíveis de felicidade. Mas é caminho sem volta.

terça-feira, 13 de fevereiro de 2018

Masmorras


Hoje eu chorei por ti.
Não. Não estou falando de amor.
Ou talvez esteja.
Ser desacreditada nas pessoas é mais facilmente tratável do que muitas prisões. Mas hoje eu senti a dor do que é cíclico em ti a vida inteira. Senti a angústia do que tu negas, enquanto deseja cura.
Não. Não te quero pra mim. Talvez no fundo eu nunca quis. Meu sentimento por ti transcende a relação que nunca existiu de verdade. Mas até ontem eu me culpava. Achava que você era livre demais e eu não tinha o direito de te torturar na minha prisão emocional. Hoje eu me perdoei. Hoje eu senti que eu, sim, ainda sou livre a ponto de te deixar livre pra você achar que é, enquanto não sai do calabouço.
Hoje eu orei por ti.
Não. Não estou falando de amor. 
Ou talvez esteja.

domingo, 21 de maio de 2017

Travessia

Aprender é exercício diário. Requer olhos treinados, um pouco de sensibilidade e paciência - sobretudo sobre aquilo que não nos convém.
Tenho aprendido muito nos últimos meses. Principalmente  que preciso aprender mais. Hoje lembro da minha prepotência de outrora e penso "que bom que tenho me predisposto a mudar"! Me tornei menos limitada, porque é isso que ignorância faz: nos encarcera em nossas certezas e nosso ego.
Quando somos jovens e dotados de saúde queremos tanto, bem mais do precisamos: muito dinheiro, diversão, queremos ser notados. A maturidade traz consigo a necessidade de estabilidade. Buscamos o suficiente pra ter uma vida confortável e em paz. Tenho aprendido a ser tolerante com os meus desejos e a me desprender mais facilmente deles quando trazem angústia, pesar. Tenho aprendido a ser menos complacente. Tenho aprendido que viver é simples, porque sempre estive mergulhada em planos demais, vontades demais. Racionalizava em excesso, me preocupava sobremaneira que a vida fosse exatamente como eu queria que fosse. Como se eu estivesse só no mundo. Como se eu não dependesse do outro, que também é um mundo. Como se o universo não tivesse forças que desconheço. Como se vida fosse parar pelo meu lamento ou minhas necessidades. Viver não metafórico. A realidade é quase palpável. Aceitá-la é o primeiro passo para a abnegação ao que não nos cabe, sem sofrer tanto com isso. Algumas coisas simplesmente são e não há nada que façamos que possa mudá-las. O que temos que decidir é apenas se queremos ter perto o que não nos condiz.
Ao passo que me abandono dos excessos, autoconheço mais; percebo melhor. Esse exercício de enxergar a si mesmo sem disfarce também faz com que aceitemos melhor a nossa humanidade e a do outro. Travessia constante.

terça-feira, 16 de maio de 2017

Lua crescente




Quatro versos, pediste 
Quatros reencontros,
te dei
Quatro paredes
De quatro, quarto 
Quarto crescente
Cresce 
Vira poesia, te dou
Quarto, casa
Quartos fartos 
Lua cheia

quarta-feira, 7 de dezembro de 2016

Essa jornada é minha

        

Tenho escrito a você ao longo dos dias como quem escreve um diário de bordo, se aventurando na esperança de guardar memórias, enquanto deseja voltar pra casa. Não há que eu moro, mas a que mora em mim. Ou como quem envia cartas a um parente distante ou um amigo de infância, contando detalhes do dia, na tentativa de preservar a intimidade. Tenho escrito para dar vazão aquilo que não dava conta sozinha, que me acompanha por ora nessa trajetória que, sabemos, logo não deve durar. Nem pra mim nem pra ti. Mas há de se ter cumprido seu papel.
Hoje decidi arriscar os primeiros passos sozinha. Calcei sapatos e me pus a caminhar, porque é pra frente que se anda...sempre.  E eu precisava cair pra seguir adiante, sem ser amparada. Hoje a verdade, ao invés de me derrotar por vez, me trouxe à luz da convicção de que existem jornadas que são só nossas. Precisamos cruzar bosques, vales, oceanos. Enfrentar dragões, bichos do armário, homens do saco, moinhos de vento. Solidão. Porque não existe desilusão maior que o passo nem frustração maior que o desejo de ir em frente.
No meu pequeno trajeto observei animais, crianças, jovens, velhos. Cada um a seu tempo. À sua pressa. À sua sede de viver. Pude ver de perto aquilo que a gente não nota, porque perdemos muito tempo voltando os olhos apenas pra nós mesmos, para os nossos anseios. Mais do vi, enxerguei. E pude observar que a vida segue seu curso e que por isso devemos seguir adiante.

terça-feira, 31 de maio de 2016

Sobre o que é diário

Nunca tive diário. Nem quando criança. Sempre achei uma ideia meio estúpida, sem sentido. Mas ontem, em meio a mais de 90 mil títulos de uma feira literária, achei um: pequeno, dourado, intrigante. Ele me propôs uma experiência nova. 365 perguntas; 1825 respostas. Uma para cada dia do ano, durante cinco movimentos de translação. Nem as seis horas extras anuais da Terra foram esquecidas. O diário tem o dia 29 de fevereiro que, pra mim, este ano, foi um divisor de águas. Pois bem, quando acabá-lo, estarei a quatro meses de completar 40 anos. Certamente terei respostas diferentes às mesmas perguntas. Como tenho tido ao longo desses 34 anos. Mas esses pedaços de folhas envelhecidas industrialmente e encadernadas me levarão a outra experiência. Melhor. A de dividi-la com alguém. Comecei a respondê-lo e o abandonarei em dois anos. Doarei, na verdade. E receberei daqui a quatro anos das mãos da pessoa que topou viver essa experiência comigo. Não sei como será. Se ele será mesmo preenchido ou negligenciado com o passar dos dias, dos anos. Mas o que sabemos sobre o amanhã? Talvez estejamos em lugares diferentes, como agora. Talvez em momentos diferentes de nossas vidas, como sempre. Talvez nem estejamos com vida. Talvez essa seja uma ideia tola...talvez! Sobre todas as perguntas que temos feito a nós no tempo em que nos conhecemos, respostas diferentes. Que foram caladas ou divididas. Esquecidas. Que amadureceram ou perderam o sentido. Porque a vida é assim, porque nós somos assim: mutantes.

domingo, 15 de maio de 2016

Rejeição





Escolher não é fácil. Toda decisão requer renúncia. E sair da zona de conforto é duro, mas as vezes é a melhor escolha.
Mas, e quando somos nós os abdicados? Definitivamente, não fomos preparados para rejeição! Fere nosso ego. Mexe com nosso brio. Mas até na decisão do outro temos escolhas a fazer: ou nos vitimizamos ou fazemos uma auto-análise de que podemos ter contribuído, sim, pra essa situação. Mas sem martírio. O que está feito está feito. Até no caos temos saída. Então, escolha se retirar com dignidade.

terça-feira, 1 de março de 2016

Nosso cardápio de emoções





Todos nós, dotados de inteligência e um pouco de autoconhecimento, sabemos no fundo até onde podemos ir, do que somos capazes.
Se as opções fossem-nos colocadas num cardápio de emoções, saberíamos escolher e descartar o insosso, onde falta açúcar ou pimenta. Sabemos exatamente o que nos sacia, o que nos dá prazer.
Aprendemos que comida saudável faz bem, mas inúmeras vezes optamos pelo fast food. Afinal, tem o paladar mais agradável e nos ludibria as sensações. Queremos comer com olhos e olfato, antes. Por fim, damos a primeira abocanhada. E em doses homeopáticas, vamos entupindo nossas artérias até chegarmos ao ponto do sufocamento. Com medo de morrer num infarto fulminante, mudamos radicalmente de hábitos. Queremos uma nova chance! Como se num estalar de dedos, nossa razão fosse lustrada por um limpador de para-brisas. Passamos a comer melhor, respirar melhor, ir a novos lugares, praticar exercícios, se dar a chance de reencontrar quem nos faz bem e esteve sempre disponível, conhecer novas pessoas, viver com mais qualidade. Perdemos peso, mudamos o corte de cabelo, damos um up no guarda roupa, às vezes mudamos até de endereço pra tentar caber no novo. Mas por que agora, se estava tudo ali antes da quase morte? Por que precisamos nos abandonar primeiro pra depois decidir tomar conta de nossas vidas? Por que temos dificuldade em dizer "não", ao outro e a nós mesmos? "Não" ao que temos a plena consciência que está nos chagando? Da possibilidade de rejeitar tudo aquilo que nos maltrata a saúde física e emocional?
Com o passar do tempo, esse cardápio de emoções fica até repetitivo. São sabores que nossos paladares reconhecem, no entanto temos preguiça de ir pra casa cozinhar, inventar uma nova receita, degustá-la, arrumar a cama e deitar tendo apenas o prazer de estar em nossa companhia. Temos apego a tudo e a todos. Somos acomodados, materialistas. Tememos o novo por pura preguiça e pavor do recomeço, mesmo depois de provar os mesmos gostos. Optamos por aceitá-los amistosamente. Nos são familiar. Correr o risco, pra quê? São tantos receios, que vamos nos esquecendo de nós mesmos, entregando e exigindo do outro um papel que só a nós cabe: o nosso compromisso com a felicidade.