Foi durante o sempre doloroso processo de separação que Tati me fez ver com clareza por que me apaixonei por ela
A culpa – porque sempre existe culpa quando se trata dessas coisas do coração – foi de uma calça cor-de-rosa da Levi’s. Uma dessas 501, de cintura baixa, bem baixa. Quando ela entrou na redação usando aquela calça, fiquei maluca. Mas ali não havia muito o que fazer. Ela tinha namorada, era praticamente casada, e eu teria que me contentar com as sempre bem-vindas, mas muitas vezes insuficientes fantasias. Foi esse meu primeiro contato visual com a Tati, minha mulher e companheira nos últimos dez anos.
Depois do episódio da Levi’s rosa, como elas – calça e proprietária – não me saíam da cabeça, decidi investir numa improvável amizade e esperar por uma janela de oportunidade. E fui me aproximando, ficando mais íntima, mais amiga, confidente, conselheira, até que, finalmente, já completamente apaixonada, vi uma brecha. No começo, foi um relacionamento tumultuado, cheio de idas e vindas, de traições e culpas. Até que ela resolveu se mandar sozinha para uma temporada na Califórnia e, quatro meses e 11 mil milhas depois, lá estava eu atrás dela, na terra onde o sol sempre brilha. E foi então que minha alma percebeu que havia chegado em casa. Tati era tudo pra mim. Me dava colo, conforto espiritual, me aprumava, me acariciava, me namorava.
Ao lado dela, e incentivada por ela, cresci, amadureci e fui feliz. Tati cuidava da grana, da comida, das burocracias pentelhas do dia-a-dia e, claro, de mim. Eu ficava incumbida de lavar a louça, de fazer ela rir e de dançar devagarinho com ela na sala, à noite, bem tarde, enquanto o mundo dormia. Juntas, fazíamos supermercado, ginástica, líamos na cama, levávamos os sobrinhos ao cinema, escolhíamos os móveis da sala, os filmes do fim de semana, o sabor do sorvete, a próxima viagem. Conversávamos sobre a vida, planejávamos o futuro, tentávamos entender o passado e ríamos muito. Ríamos das coisas engraçadas, das coisas tristes, das coisas bobas, das coisas sérias – em minha memória, existe um arsenal imenso de risadas compartilhadas com minha companheira de cabelos castanhos, pele e olhos cor de mel.
Tati dormia abraçada comigo, me coçava as costas, lia meus textos antes de publicados, fazia correções, sugestões e colocava a cabeça em meu ombro quando falava, sempre com extrema competência e simplicidade, sobre as coisas mais profundas da vida. Levava vinte minutos escovando os dentes antes de deitar porque estava convencida de que assim evitaria futuros problemas na gengiva, passava creme no rosto dando tapinhas leves na testa e na bochecha num ritual delicioso e que todas as noites me fazia rir, dormia sempre de bruços e sempre muito silenciosamente, e, antes de engolir qualquer bebida, “mastigava” o líquido para “fazer com que ele descesse mais quentinho”.
Ela me fez ver o que eu jamais teria visto sem ela. Me fez chegar a lugares que eu talvez levasse uma vida para chegar, se chegasse. Me fez ser um tipo de pessoa que eu muito provavelmente nunca conseguiria ter sido. Tati me fez acreditar que eu podia, que eu devia, que eu precisava ouvir os anseios mais profundos da minha alma. Me fez optar pela estrada certa, mesmo não sendo a mais fácil ou nítida.
Há algumas semanas, Tati e eu decidimos seguir caminhos separados. Depois de passar dez anos respirando o mesmo ar que ela, estou reaprendendo a dar meus passos sem ser amparada, sem ser observada, sem minha maior admiradora e fã. E foi durante o sempre doloroso processo de separação, esse que divide CDs, livros, guarda-roupa (no caso de casais gays, claro) e a alma, que ela me fez ver com clareza exatamente por que me apaixonei perdidamente por ela há dez anos.
Tati é magnânima, delicada, inteligente, doce, sensível, carinhosa, linda e, acima de tudo, me ama com um tipo de desinteresse genuíno que normalmente esperamos receber apenas de nossos pais.
Em minha memória, sobraram fragmentos de imagens apaixonadas, engraçadas, divertidas, inesquecíveis: ela e eu decidindo o jantar daquela noite, fervendo a água para o macarrão, brindando nosso relacionamento com vinho tinto, rindo alto de algum episódio de Friends, fazendo panqueca no café-da-manhã, jogando raquetinha na praia, tênis no clube, comprando pão francês na padaria, o quindim do Pinheiros, correndo na pracinha, conversando na cama antes de dormir, brincando de fazer amor.
Tati me fez mulher, me fez feliz, me fez quem sou. Tati foi embora, mas deixou seu sorriso perfeito, branco, aberto, sincero, sempre apaixonado. E a Levi’s cor-de-rosa, evidentemente. Porque ela sabe que os ciclos da vida são feitos de pequenos e aparentemente insignificantes detalhes – e de pessoas. Pessoas, para os que têm sorte, como a Tati.
(Milly Lacombe)
terça-feira, 23 de março de 2010
Quando o amor não acaba
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Um comentário:
Muito bom esse texto! O li há alguns anos... Mas engraçado como agora ele parece diferente. Algum detalhe discreto que o fez perder o encanto que teve quando o li pela primeira vez.
Não deve ter muito a ver, mas... acho que a Levi's não era cor-de-rosa. Era cinza.
Beijos escarlates.
Ah! Amei o novo layout. Parabéns! :*
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